Aviso de conteúdo: Menção a disforia (de espécie e de gênero) e a sentimentos de inadequação, exorsexismo anti-xenogênero.
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Olhar para o mar era o seu descanso. Sentir a brisa marítima em sua pele, observando ela roubar o seu fôlego. As ondas calmas lhe hipnotizam e ila fica tão distraíde, que mal escuta o que a pessoa ao seu lado está dizendo, ocupade em se deixar levar pela sua casa, pelo seu porto-seguro.
Se fechasse os olhos, poderia ouvir o som que emanava da sua própria consciência, que retumbava em seus ouvidos. Ila sente-se acolhide, mas depois de um tempo, uma agonia familiar se assenta, aquela que lhe fazia desejar ser inúmeras vezes maior e poder desfrutar o mar em sua totalidade. Abrindo os olhos novamente, ila suspira, sentindo-se frustrade.
A pessoa ao seu lado continua falando. — ….então elu me perguntou como o meu gênero poderia ser uma cor, e aí eu respirei fundo e tentei explicar pela milésima vez que….
Malu balança a cabeça, fingindo que estava ouvindo, enquanto encarava o mar e ansiava por sentir a água salgada nos seus poros. Ila queria se levantar e ir até à beira do mar, queria ter coragem o suficiente para avançar e dar um mergulho. Mas infelizmente, não era o caso.
— ….Malu? — Ila escuta, vagamente. — Malu!
Sentindo-se ser chacoalhade, ila pisca os olhos rapidamente, se voltando para sua amiga preocupada. Ela estava com as sobrancelhas arqueadas, lhe perguntando silenciosamente o que estava acontecendo.
— O que foi? — Malu olha para os lados.
— …. — Lua fica inexpressiva. — Nada não, você só ignorou tudo o que eu te disse. — Falando com sarcasmo, ela balança a cabeça.
Malu desvia o olhar, se sentindo um pouco culpade por sua falta de atenção. Suspirando mais uma vez, ila diz: — Me desculpa. — Suas pernas começam a se agitar. — Eu estava….
— Sonhando acordade? — Lua sugere.
— Acho que sim. — Ila responde, reflexive. Olhando de soslaio para a outra, Malu franze o nariz. — Sinto muito, de verdade.
Sua amiga se cala, lhe encarando como se estivesse tentando desvendar um grande mistério, mas depois de um tempo, a expressão dela suaviza, seus olhos castanhos-escuros se tornando carinhosos e amenos. Malu às vezes sentia que podia encontrar um lar dentro daqueles olhos, de tão aconchegantes que pareciam de longe. Lembrar disso lhe faz sorrir momentaneamente e esquecer de seus conflitos internos.
— Não precisa se desculpar, sue distraíde. — Lua diz, pegando algumas mechas do seu cabelo e passando os dedos pelos cachos. — Mas e aí, o que tá acontecendo com você? Com o que você está sonhando?
O sorriso de Malu se desfaz um pouco e ila dá de ombros. — Com o de sempre.
Lua parece ter uma realização. — Oh, com o de sempre? — Ela fala com uma certa cautela. — ….Está se sentindo disfórique?
Malu faz uma careta. — Mais ou menos. — Ila esfrega o rosto. — Sabe aquela sensação de que seu corpo é o seu corpo, você não tem nenhum problema contra ele, mas você apenas sente que não se adequa a nada do que deseja? Que seus membros são muitos pequenos e que suas pernas….. — Ila geme de frustração. — ….são pernas.
Lua balança a cabeça. — Não, eu não entendo nem um pouco. — Ela inclina a cabeça para o lado. — Bem, talvez só a primeira parte….
— Ugh. — Malu abaixa a cabeça até deitá-la no ombro da amiga. — Disforia de espécie é uma merda.
Lua ê abraça e lhe traz para mais perto. Ila automaticamente se sente confortade, com os braços dela ao redor do seu corpo.
— É, toda disforia é uma merda. — Ila sente sua cabeça ser acariciada enquanto a outra fala. — Olha, eu não sou otherkin, então não posso exatamente me identificar com o que você sente, mas….esse sentimento de que seu corpo não se adequa ao que você quer dele? Eu entendo. — Lua se cala por alguns segundos e depois continua. — ….Eu só queria não ter genitais e outras características sexuais, para que as pessoas parassem de tentar “descobrir” o meu gênero a todo momento.
Malu volta a fazer careta e sente simpatia. — Merda de sociedade que atribui gênero a características sexuais.
— Exatamente! — Lua concorda, gesticulando. — Ah, eu queria que as pessoas parassem de tentar atribuir um gênero a mim em si. — Ela bufa. — Eu comentei isso com a pessoa de quem eu estava reclamando antes, e sabe o que elu respondeu? “Ah, então por que você não se identifica como agênero? Assim as pessoas te levariam a sério.”
Malu revira os olhos, achando aquilo ridículo. — Como se levassem qualquer pessoa não-cis a sério.
— Mas aparentemente, ser agênero é “aceitável”. — Lua imita uma voz engraçada. — Confunde menos a cabeça das pobres pessoas cis. — Ela estala a língua. — Sinceramente, o que tem de confuso em alguém que usa uma cor como uma metáfora pra sua ausência de gênero? O que tem de enigmático em uma pessoa que pensa em sua identidade de gênero e vê apenas um espaço em branco? Se acham minhas experiências confusas, é porque nem querem tentar entendê-las em primeiro lugar.
Após ouvir sua amiga desabafar, Malu se sente ainda mais culpade por não ter ouvido o que ela tinha para falar. Ila sente a pele da outra pessoa contra a sua, o cheiro de perfume floral invadindo o seu olfato, o tecido macio do biquíni, e dentro delu, surge a vontade de acabar com qualquer coisa que a estava chateando. Talvez não fosse possível, no entanto. Era algo além do seu controle.
Malu se afasta e olha para o rosto de Lua, que estava com uma expressão desanimada. Ila lentamente se aproxima do rosto dela, apoiando as suas testas. A outra apenas bufa.
— O que é isso? — Sua amiga pergunta.
— …Sinto muito. — Ila responde. — Eu aqui preocupade com a minha própria vida e você tendo que lidar com esse tipo de gente. — Malu morde os lábios. — Tem algo que eu possa fazer por você?
Sua amiga abre um sorriso. Ela olha para o lado e depois dá de ombros. — Mn, tem sim.
— O que, então? Eu faço qualquer coisa.
Um silêncio misterioso se instala e Lua se torna pensativa, de repente. Malu espera, expectante. Tudo o que poderia fazer para deixar ela melhor, ila faria.
Os olhos da outra ficam ainda mais suaves, se possível.
— Continue existindo. — Ela diz, seu sorriso brilhante como água do mar refletindo a luz do sol. — Ver você sendo você me faz sentir menos inadequada nesse mundo.
Malu fica com os olhos arregalados por um minuto antes de começar a rir de nervoso. A outra sempre dizia essas coisas a todo momento, como se fossem frases simples, como se não fossem extremamente importantes.
— Own, eu te deixei corade. — Lua nega com a cabeça. — Sinceramente, Malu, você não tem culpa por vivermos no mundo que vivemos. — Ela beija a sua bochecha. — Apenas continua sendo minhe amigue. É o suficiente.
Era o suficiente. Suficiente.
Quando tudo na sua vida parecia apenas ansiar por algo que nunca conseguiria, sentir-se insuficiente era uma constante. Malu não se sentia apenas inadequade, como também se sentia alienade, como se nada soasse bem para alguém que não era humane e nunca iria ser. Mas aqui estava ila, sendo contade que sua existência era o suficiente.
Ila sorri, um sorriso largo e tão brilhante quanto o da amiga.
— Você me lembra o mar. — Malu diz repentinamente, sentindo uma alegria borbulhar dentro de si.
É Lua quem fica surpresa agora, se afastando um pouco para encarar-lhe adequadamente. Os olhos dela piscam em um ritmo devagar.
— O que? — Ela arqueia uma sobrancelha. — Como assim?
Isso significa que você é o meu lar.
Significa que eu me sinto confortável com você.
Significa que você é importante pra mim.
Era tudo o que Malu queria falar, mas não era como se pudesse soltar suas palavras facilmente, como Lua fazia. Elas entalam na sua garganta e se recusam a sair.
— É….bem.… — Ila gesticula com as mãos. — Você….é.…o meu mar? Não, tipo, você não é o mar, obviamente. Só que….
Sua amiga começa a sorrir, colocando as mãos em seus ombros.
— Ei, tudo bem. — Ela tenta lhe tranquilizar. — Não precisa explicar.
— Mas…
— Malu, eu sou o seu mar. — Lua diz com aquela voz engraçada. — Você não está permitide a retirar o meu título.
— …. — Ila se cala por alguns momentos e depois geme alto de frustração, voltando a se deitar na amiga. — Ugh, as vezes eu queria ser como você.
— A pessoa xenogênero mais legal do mundo? — Sua amiga oferece, soando um pouco teatral.
Isso faz Malu rir. — Tem alguma votação desse tipo na comunidade?
— Não, mas se tivesse, eu venceria.
Malu tapa a boca, rindo ainda mais. — Uhum.
— Porque eu sou ótima. — Lua volta a brincar com seu cabelo. — Não entendo porque você está rindo, eu tô falando sério.
Isso não ajuda em parar ila de rir, só aumentando o concerto de risadas.
— Você ri de tudo. — Lua afirma, enrolando seus cachos. — Seria a baleia com o humor mais quebrado do mundo?
— Para com isso. — Malu continua gargalhando.
As risadas ecoam na praia quase deserta, com as ondas do mar dançando calmamente. Malu abraça a sua amiga com força, tentando expressar tudo o que estava sentindo com seu toque, e esperando que fosse suficiente.
E ao contrário de suas expectativas, talvez fosse.
— Ei. — Lua lhe chama.
— Hum?
— Nadar um pouco no mar aliviaria a sua disforia? Tipo, ajudaria um pouco com ela, pelo menos?
Malu fica horrorizade, por um momento. Ila nega com a cabeça rapidamente, sentindo seu coração começando a bater rápido. Como se estivesse sentindo seu nervosismo pela proximidade, Lua empurra-lhe gentilmente.
— O que foi? — Ela segura o seu rosto.
— Eu…eu…eu… — Malu desvia o olhar. — Meio que não sei nadar.
— Ah. — Lua apenas fala isso, seus olhos vidrados.
Malu estala a língua. — Por favor, não mencione a ironia disso. — Ila esfrega o rosto. — Eu adoraria poder ir além da beirada, mas….
— Entendi! — A sua amiga responde do nada, alegremente. Ela se levanta e lhe deixa atônite na areia. — Eu tenho uma solução pra isso.
— O que… — Malu tenta questioná-la, mas é puxade para cima.
— Vamos, eu carrego você. — Lua anuncia, animada. — Você pode me usar como uma boia humana.
Malu a encara, tentando descobrir se ela estava falando sério. Continuando parade, ila pisca os olhos rapidamente para a amiga.
— O que foi? Eu juro que não vou te soltar. — Ela aperta as suas mãos. — Vamos juntes, que tal?
Ila observa o rosto da outra, os olhos brilhantes e a curva no canto da boca que sempre estava presente. A inadequação lhe acompanhava desde sempre e ila suspeitava que iria sempre lhe acompanhar. Porém, havia uma rota de fuga na praia, com os sons suaves do mar, com os dedos do pé afundados na areia, com alguém que se sentia tão inadequada quanto ila.
Não era incomum ver baleias nadando em pares.
Malu com toda certeza não queria nadar sozinhe.
Suas mãos apertam as mãos de Lua de volta. Um sim silencioso. Ela entende e lhe puxa para frente, levando-ê para o mar, devagar, como se não quisesse lhe assustar. Malu agradece, pois seu coração ainda batia freneticamente em seu peito.
Timidamente, ila limpa a garganta, chamando a atenção da amiga.
— Sim? — Lua pergunta, olhando na direção do mar.
— Bom…. — Malu começa, envergonhade. — Você pode não ser a pessoa xenogênero mais legal do mundo mas….com toda certeza é a amiga mais legal.
Lua para, fazendo ila parar também. Ela se vira e sem nenhuma surpresa, lhe concede um dos melhores sorrisos da face da terra.
— Eu sou ambas as coisas. — Sua amiga diz, levantando a cabeça arrogantemente. Cinco segundos depois, ela ri, fazendo um carinho em sua mão com a dela. — E você é mais que legal. É simplesmente incrível, e também sensacional.
Sempre dizendo essas coisas, sem se importar com nada. Malu bufa, seu rosto ficando vermelho de verdade dessa vez.
— Já falei que você é mais que legal?
— Para com isso! — Malu grita, franzindo o rosto.
Lua gargalha e continua lhe puxando. Ila aproveita a distração da outra para sorrir.
O mar estava lá, tão próximo quanto a sua amiga, em seu esplendor. E Malu estava com vontade de fugir. Estava com medo de que aquilo não ajudasse em nada.
Mas a inadequação não parecia tão ameaçadora quando não era acompanhada de profunda solidão. E a mesma coisa se aplicava ao mar.
Ila é arrastade para a sua casa, pela pessoa que mais lhe lembrava dela.
Malu sorri ainda mais, logo sentindo a água batendo em seus pés.
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